quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

ALZARITH TOMBADA NA RUA

"Aqui, a morte não consente metáforas. A miúda está estendida na rua, um fio de sangue saiu da nuca e secou no pó da rua, a rua traça um diâmetro com a eternidade. Chamava-se Alzarith, tinha seis anos, e corria - sabe-se lá para onde? Mas corria, penso, atribuindo à modesta ideia a substância improvisada das coisas. Os miúdos são feitos para correr e transportar no riso a felicidade dos adultos. Os miúdos não nascem para sujeitos destas fotografias, marcadas pela recôndita obscenidade da morte.

Podemos, talvez, reconstituir, mentalmente, o silêncio de depois do tiro fatal. A rua está deserta. Volátil, o pó atribui à cena uma densidade inesperadamente bela, comovente e humilde. Alzarith, os cabelos longos de Alzarith parecem uma estrela no chão; os braços de Alzarith estão abertos, crucificados num espanto sem palavras, num assombro sem piedade; e uma das pernas ergue-se levemente. Jaz. A fotografia não é o mudo instante de uma tragédia. É o absoluto da infâmia. É a insuportável humilhação aplicada pela morte.

Sem tecto, entre ruínas.(…) Nem vivalma - e a rua é longa e larga. Pressente-se o silêncio e a desolação. A quem pertence esta Alzarith, cujo nome o repórter fotográfico apôs na legenda, tirando-o do árabe antigo e cujo ambíguo significado poderá ser: a que ninguém conhece. Mal aplicado o nome: alguém deverá, certamente, conhecer a menina caída na rua. Serão vivos, ainda, os pais? Terá irmãos e irmãs? Quem a chora? Quem a procura? Quem por ela desespera?
Houve um homem desavisado, e certamente em dia de cólera, que descarregou, em duas frases cruéis e cegas, o secreto desassossego que o perseguia: "Todos somos culpados. Ninguém é inocente." Alzarith é culpada de quê? De ter nascido num mundo concentracionário, de ser cativa de uma época da qual tudo ignoramos ou tudo desejamos ignorar? A fotografia evoca a perda de sentido e, também, a teatralização com que a morte se ornamenta, sem arrependimento nem pesar.


O conceito de crime (penso agora, examinando, detidamente, a imagem e o que ela oculta) adquire, aqui, uma envergadura difícil de interpretar. A comparência do horror, ei-la, como urgência universal da memória e da auto-acusação. Multiplicam-se as declarações piedosas. As metáforas do arrependimento, da confissão e das desculpas passam a outra escala. E Alzarith está estendida na rua, tornando-se numa outra banalidade da aversão e do ódio. Na gíria, foi reduzida a um bom "boneco", tema de primeira página de jornal ou de capa de revista. Inventaram-lhe um nome. Porém, será sempre ela, a menina morta numa poeirenta rua de Gaza. "

Baptista-Bastos, escritor e jornalista

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